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Em finais do século XIX, vários dos nossos poetas pareciam empenhados em "trocar impressões" sobre "The Raven" de Poe, implicando isso sucessivas metamorfoses de pombas e borboletas...
I. António Feijó, “In Amaritudine”
in Líricas e Bucólicas, 1884; repr. Poesias Completas, coord. J. Cândido Martins, Porto, Caixotim, 2004, 136-137.
Quando isto sucedeu estávamos em Julho.
Se às vezes me entristeço e com pesar vasculho
como um antiquário as noites na memória,
lembra-me com saudade esta singela história
que tanto me comove e nunca hei-de esquecer,
guardando-a como o noivo a imagem da mulher
que a Morte lhe roubou quase ao sair da igreja…
Fecho-a no coração, se a fantasia adeja
em distantes regiões esplêndidas e belas,
como uma incrustação de pérolas e estrelas!
Estávamos em Julho. Eu vivia na aldeia;
buscava a grande paz das árvores, tão cheia
d’angustias eu trazia a alma esfacelada!
Morávamos, então, numa casa arruinada,
num antigo solar cheio de musgo e d’hera,
que ao desamparo tinha essa expressão austera
dum fidalgo que morre unido à sua crença.
Do meu quarto avistava a perspectiva imensa
das montanhas azuis nos tons crepusculares,
e ali desafogava os meus cruéis pesares,
negros como um esquife e os panos duma essa.
A vida para mim era uma noite espessa,
o céu feito de chumbo e estrelas apagadas,
onde apenas ouvia as secas enxadadas
a cobrirem de terra as tábuas dum caixão…
Foi n’esse estado atroz que eu tive esta ilusão,
quando fitava imerso em tristes pensamentos
a cordilheira erguida a desafiar os ventos
no horizonte longínquo, ao pôr do sol glorioso.
Uma pomba d’aspecto ebúrneo e cetinoso
(choro se nesta ideia o espírito concentro)
a esvoaçar entrou pela janela dentro
do meu quarto; poisou sobre um estranho busto,
– vestígio que ficou d’algum artista augusto,
velha imagem, talvez, dum santo ou dum herói –
e as asas distendeu como o corvo de Poe
naquela solidão, cheia de um tédio amargo…
Ao vê-la despertei do místico letargo
em que a dor me lançou, profunda e silenciosa;
senti-me renascer, voltar à vida ociosa,
numa unção, numa paz, tão salutar, tão calma,
como quem vê florir a murcha flor da alma
e num momento esquece a angústia que o devora.
Nos dilúvios da mágoa a pomba foi a Aurora
e o arco da Aliança e o ramo da oliveira,
o talismã que prende a minha vida inteira,
que encerra toda a paz e um mundo em si contém…
Pomba! Serias tu, Alma de minha Mãe?
II. Alberto Osório de Castro, “Nocturno”
in Bohemia Nova, Coimbra, nº2, 15 de Fevereiro de 1889; repr. Obra Poética, vol. 1, coord. J. C. Seabra Pereira, Lisboa, INCM, 2004, 110-111.
I
Esta noite de Inverno hostil e dura,
Em meu quarto, horas mortas, religiosas,
Entrou, batendo as asas lutuosas,
Uma pequena borboleta escura.
II
Ergui os olhos do volume antigo
Que absorto lia, – um poema d’Alemanha.
Lá fora o vento n’uma fúria estranha
Lembrava os pobres que não têm abrigo.
III
Não sei por onde entrara a borboleta
E impressionou-me muito sobretudo
Ver a sua asa negra de veludo
De mim em torno esvoaçada e inquieta.
IV
Segui-lhe ansioso o voo intencionado…
Poisou-me enfim no coração, e logo
Com que a folha dum punhal em fogo
Me atravessou meu peito, lado a lado.
V
Choro convulso, involuntário a sigo…
Uma lembrança horrível me tortura!
Olho, não vejo a borboleta escura,
- Alma talvez d’algum dos meus em perigo!
5. António Nobre, “O Poeta, está, (deu meia-noite, agora)”
Publicado postumamente in Primeiros Versos, 1921; repr. António Nobre, Poesia Completa, coord. Mário Cláudio, Lisboa, Dom Quixote, 2000.
O Poeta, está, (deu meia-noite, agora),
Na sua Torre, só, lendo e fumando…
Batem à porta! Quem será a esta hora?
Passa uma escura borboleta, voando!
Agoiro. Alguma nova aterradora,
Algum despacho… Mas Joseph, entrando,
Antes que eu fale diz: Uma senhora,
Que me entregou este bilhete, ansiando.
Uma senhora! Com a mão gelada,
Nervoso, ansioso, pego da tarjeta
E leio: «Morte 3 rua do Nada».
Bem, Joseph! Podes-me ir fazendo a mala,
Porque, segundo as regras da etiqueta,
Não devo demorar muito em pagá-la…
Coimbra, 1889
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