Sunday 20 April 2008

O Simbolismo Português e "The Raven" de Edgar Allan Poe


Em finais do século XIX, vários dos nossos poetas pareciam empenhados em "trocar impressões" sobre "The Raven" de Poe, implicando isso sucessivas metamorfoses de pombas e borboletas...

I. António Feijó, “In Amaritudine”
in Líricas e Bucólicas, 1884; repr. Poesias Completas, coord. J. Cândido Martins, Porto, Caixotim, 2004, 136-137.

Quando isto sucedeu estávamos em Julho.
Se às vezes me entristeço e com pesar vasculho
como um antiquário as noites na memória,
lembra-me com saudade esta singela história
que tanto me comove e nunca hei-de esquecer,
guardando-a como o noivo a imagem da mulher
que a Morte lhe roubou quase ao sair da igreja…
Fecho-a no coração, se a fantasia adeja
em distantes regiões esplêndidas e belas,
como uma incrustação de pérolas e estrelas!

Estávamos em Julho. Eu vivia na aldeia;
buscava a grande paz das árvores, tão cheia
d’angustias eu trazia a alma esfacelada!
Morávamos, então, numa casa arruinada,
num antigo solar cheio de musgo e d’hera,
que ao desamparo tinha essa expressão austera
dum fidalgo que morre unido à sua crença.
Do meu quarto avistava a perspectiva imensa
das montanhas azuis nos tons crepusculares,
e ali desafogava os meus cruéis pesares,
negros como um esquife e os panos duma essa.
A vida para mim era uma noite espessa,
o céu feito de chumbo e estrelas apagadas,
onde apenas ouvia as secas enxadadas
a cobrirem de terra as tábuas dum caixão…

Foi n’esse estado atroz que eu tive esta ilusão,
quando fitava imerso em tristes pensamentos
a cordilheira erguida a desafiar os ventos
no horizonte longínquo, ao pôr do sol glorioso.
Uma pomba d’aspecto ebúrneo e cetinoso
(choro se nesta ideia o espírito concentro)
a esvoaçar entrou pela janela dentro
do meu quarto; poisou sobre um estranho busto,
– vestígio que ficou d’algum artista augusto,
velha imagem, talvez, dum santo ou dum herói –
e as asas distendeu como o corvo de Poe
naquela solidão, cheia de um tédio amargo…

Ao vê-la despertei do místico letargo
em que a dor me lançou, profunda e silenciosa;
senti-me renascer, voltar à vida ociosa,
numa unção, numa paz, tão salutar, tão calma,
como quem vê florir a murcha flor da alma
e num momento esquece a angústia que o devora.
Nos dilúvios da mágoa a pomba foi a Aurora
e o arco da Aliança e o ramo da oliveira,
o talismã que prende a minha vida inteira,
que encerra toda a paz e um mundo em si contém…

Pomba! Serias tu, Alma de minha Mãe?


II. Alberto Osório de Castro, “Nocturno”

in Bohemia Nova, Coimbra, nº2, 15 de Fevereiro de 1889; repr. Obra Poética, vol. 1, coord. J. C. Seabra Pereira, Lisboa, INCM, 2004, 110-111.

I
Esta noite de Inverno hostil e dura,
Em meu quarto, horas mortas, religiosas,
Entrou, batendo as asas lutuosas,
Uma pequena borboleta escura.

II
Ergui os olhos do volume antigo
Que absorto lia, – um poema d’Alemanha.
Lá fora o vento n’uma fúria estranha
Lembrava os pobres que não têm abrigo.

III
Não sei por onde entrara a borboleta
E impressionou-me muito sobretudo
Ver a sua asa negra de veludo
De mim em torno esvoaçada e inquieta.

IV
Segui-lhe ansioso o voo intencionado…
Poisou-me enfim no coração, e logo
Com que a folha dum punhal em fogo
Me atravessou meu peito, lado a lado.

V
Choro convulso, involuntário a sigo…
Uma lembrança horrível me tortura!
Olho, não vejo a borboleta escura,
- Alma talvez d’algum dos meus em perigo!

5. António Nobre, “O Poeta, está, (deu meia-noite, agora)”

Publicado postumamente in Primeiros Versos, 1921; repr. António Nobre, Poesia Completa, coord. Mário Cláudio, Lisboa, Dom Quixote, 2000.

O Poeta, está, (deu meia-noite, agora),
Na sua Torre, só, lendo e fumando…
Batem à porta! Quem será a esta hora?
Passa uma escura borboleta, voando!

Agoiro. Alguma nova aterradora,
Algum despacho… Mas Joseph, entrando,
Antes que eu fale diz: Uma senhora,
Que me entregou este bilhete, ansiando.

Uma senhora! Com a mão gelada,
Nervoso, ansioso, pego da tarjeta
E leio: «Morte 3 rua do Nada».

Bem, Joseph! Podes-me ir fazendo a mala,
Porque, segundo as regras da etiqueta,
Não devo demorar muito em pagá-la…

Coimbra, 1889

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