Saturday, 17 May 2008

"Slavery's Pleasant Homes" de Lydia Maria Child (post de Ricardo Sérgio)


Muitos, nos estados do Sul, chamavam à escravatura a “instituição patriarcal”. Nela, mulheres, crianças, escravos, gado e terras eram apenas objectos cuja propriedade pertencia ao homem, branco. As senhoras do sul são produto de um sistema social que as reduzia a escravas num harém. “The bride had been nurtured in seclusion, almost as deep as that of the oriental harem”. A mulher era por parte do homem remetida a um estado de confinamento em que todas as relações dela se limitavam a ele. É Frederic que tem o acesso exclusivo a Marion, e que o tenta ter em relação a Rosa.
Marion e Rosa foram criadas juntas como irmãs, mas, no entanto, o facto de uma ser propriedade da outra mina qualquer sentimento mais intimo que possam ter. “...and soon as the little white lady could speak she learned to call Rosa her slave”. Marion, concebida ela própria para ser uma figura ornamental, vai tornar Rosa num seu objecto: “...and loved to decorate her with jewels”. Na verdade a maioria dos escravos não teria acesso a ornamentos de ouro, mas baseando-se na convenção romântica e tentando que o leitor branco se aproxime da escrava Rosa, Child atribui a Rosa um “small heart and cross of gold”, oferecido pelo amante George, e pressagiando já um amor crucificado, um final trágico.
Mas mais importante, Rosa é retratada por Child como a mulher ideal: fisicamente robusta, em contraste com Marion frágil e delicada, e moralmente pura. Essa pureza moral e espiritual é necessária e própria das concepções de feminilidade do século XIX. Rosa prefere morrer a suportar abusos. Essa forma de retratar a escrava com uma feminilidade mais recatada normalmente reservada à mulher branca era incomum na literatura da época. Os corpos dos escravos eram corpos públicos e expostos, usados como força de trabalho e suportando castigos. O corpo do escravo assume quase o estatuto de texto, na medida em que muitas vezes nele podem ser lidos todos os abusos suportados.
Child faz de Rosa uma vitima e nisso segue as narrativas masculinas sobre a escravatura em que as mulheres são sempre vistas como vítimas. Rosa é vítima de Frederic mas também de Marion, quando esta dirige sobre ela a fúria que seria melhor canalizada sobre o seu marido, demonstrando assim também a sua impotência. Mas a mais conseguida demonstração dessa violência sobre Rosa está condensada em: “one severe flogging succeeded another, till the tenderly-nurtured slave fainted under the cruel infliction, which was rendered doubly dangerous by the delicate state of her health. Maternal pains came on prematurely, and she died a few hours after.” Child consegue em poucas palavras demonstrar a violência sobre uma mulher grávida, que resulta primeiro num aborto e depois na morte.
Frederic é encontrado morto com o seu próprio punhal no coração. Como Child demonstra, a violência do proprietário de escravos volta-se contra ele mesmo. A violência é a verdadeira essência da escravatura. O escravo Mars é Marte, deus da guerra. A escravatura destrói a irmandade entre os Homens, destrói a irmandade entre irmãos como Frederic, George, Marion e Rosa; e destrói qualquer solidariedade que possa haver entre os escravos.
Só George com a sua confissão repõe alguma dignidade. Mas esse seu acto é tornado anónimo. “His very name was left unmentioned; he was only Mr. Dalcho's slave!” E como anónimo e não relatado pelos jornais o seu acto, e o seu ser tornam-se não-existentes. Só o narrador consegue repor a verdade. É essa verdade possível que Child procura quando subintitula Slavery's Pleasant Homes como A Faithful Sketch.

6 comments:

Anonymous said...

A escravatura baseia-se toda ela numa injustiça humana...não só estava ligada aos escravos (negros principalmente mas também chineses) como também à própria mulher branca que não era mais que propriedade (quase que se podia dizer (num sentido cómico) que o homem casava com o dote e o bónus era a sua mulher).

Anonymous said...

Mulher( esposa) e Escrava quase são sinónimos.
Confesso que esta é uma das temáticas que mais me atrai na literatura e concordo com a Luísa quando diz que a mulher não era mais que propriedade do homem. Era como ter um escravo. A mulher era livre mas não no sentido literal da palavra

Anonymous said...

Atenção, que no caso das "southern belle", a submissão em relação ao marido podia ser só aparente, ou mesmo existir uma inversão de papéis. Por diversos meios, alguns mais subtis, a mulher podia não só manipulá-lo, como conseguir para algum escravo que a desagradasse castigos bastante cruéis. Podendo em muitos casos, a"southern belle" considerar-se uma criança mimada ao nível psicológico, podia sempre esperar-se o pior. Sendo grande parte das relações humanas baseadas em relações de poder, a escravatura também o era, até um nível obsceno e imoral. Se fosse dado a uma criança mimada poder total sobre as outras, decerto que o resultado não seria recomendável. No fundo o que tínhamos com a tal "peculiar institution" era campo aberto a todo o tipo de males e perversidades, ainda para mais com a aprovação da igreja.

Anonymous said...

A escravatura atinge em " Slavery´s Pleasant Homes" não só uma dimensão de segregação pela cor da pele, mas também pelo sexo. É interessante perceber como a distinção em função da cor surge sempre associada a segregação em função do credo, sexo, origem cultural. Não é por isso estranho que ao tempo de Frederick Douglass, David Walker, William Garrison tenham surgido gritos de revolta cde Lydia Maria Child e Angelina Grimké. Tudo isto vem provar que A questão da Escravatura mais que uma diferença entre os estados do sul e do norte acerca dos direitos dos negros tem uma dimensão maior. Está em causa o Principio da Igualdade e a sua aplicação no pais que se dizia um "Mundo Novo"...

Anonymous said...

As diferenças e descriminações raciais e sexistas encontradas neste "Slavery's Pleasant Homes", demonstram a realidade actual em muitas regiões dos Estados Unidos. Actualmente este é um estigma muito mais presente nos estados do sul, claro que já não existe escravatura, mas existe por exemplo, descriminaçoes em relação ao emprego de pessoas de raça negra e mulheres. Num país que se auto-intitula como a terra das oportunidades, ainda não se encontram direitos iguais para todos. De certa forma a descriminação pode ser comparável á do tempo de Lydia Maria Child.

Anonymous said...

Em "Slavery's Pleasant Homes" podemos encontrar a verdadeira essencia da escravatura, mesmo apesar de Lydia Maria Child tentar criar uma imagem simpática de união, compaixão e irmandade entre escravo e senhor, retratada na relação de proximidade de Marion e Rosa. Mas mesmo esta mostra também a diferença entre uma classe e outra, bem referida pelo Ricardo Sérgio, quando Childa refere que Marion assim que começou a falar, aprendeu a chamar Rosa de escrava, tratando-a como um objecto que se pode enfeitar, como o Ricardo também mencionou.
Penso que está um comentário bastante bem conseguido, e de facto este texto é um "faithful sketch" da realidade da escravatura americana.