Sunday 11 May 2008

Francisco Luís Parreira, sobre Bartleby



Francisco Luís Parreira respondeu por escrito à maioria das perguntas colocadas aqui pela Madalena.

Grande generosidade na matéria para reflexão.


1- Se Bartleby representa o abandono, a pobreza, etc., e Brodsky o oportunismo, o capitalismo, etc., que papel é desempenhado por Drummond? A sua aparente generosidade tornam-no próximo de Bartleby, mas os seus receios, fugas e cautelas vendem-no ao lado oposto.

No que diz respeito ao texto de Melville, não estou seguro de que Bartleby represente isso que diz. O carácter representativo de uma personagem é aliás um canto de sereia a que Bartleby, como o astucioso Ulisses, resiste — para grande desespero nosso — amarrado aos seus mastros: o biombo, a parede que contempla, a sua inexorável falta de preferência, etc. Em certa medida, essa sua resistência a deixar-se determinar transporta-se para as outras personagens, cuja determinação é subordinada à dele. É precisamente porque Bartleby nada representa que as outras personagens (que são, por si, cheias de particularidades) também não podem fazê-lo (e nesse sentido não há lado oposto). Nessa medida, elas assemelham-se ao leitor. Ao agirem, elas mostram-se como um leitor perante um texto numa língua que não percebem, mas a respeito do qual lhes foi pedido que tomassem uma decisão. Na minha versão, quis pensar Bartleby como um poço para dentro do qual deitamos moedas e do qual esperamos que nos diga a fortuna, ou para o qual gritamos à espera de um eco. Mas este poço é especial, nada quer saber dos nossos actos mágicos e não nos devolve imagem do que somos. Este modelo permitia-me acrescentar as moedas que quisesse. Uma delas é, por assim dizer, a moeda da modernidade ou, melhor, da sua crítica, na versão nietzschiana. Brodsky fala com Bartleby como se já tivesse lido a novela, como se já soubesse que ele é um herói moderno e tentasse decifrar em que consiste esse atributo.


2. Que peso simbólico tem a parede física e abstracta de Wall Street? Traduz a impotência de Bartleby? O biombo assume no texto alguma relevância. A que se deve isso? E o busto de Cícero? Por que se apresenta tão querido a Drummond, quando tanto contrasta com o seu modo de vida?

No meu texto, o busto de Cícero e os arranha-céus negam-se reciprocamente, por assim dizer. É o que está em causa no discurso de Brodsky. Brodsky vê na modernidade um desafio existencial superior ao da dignitas ou da moderação romanas, justamente pelo carácter de risco supremo que ela envolve. Nova Iorque é agora a maior cidade romana ou grega do mundo e, portanto, uma projecção do desafio humano numa dimensão que as categorias clássicas já não podem conter. Enquanto que a dignitas de Drummond é reservada e gravitacional (não creio que o busto contraste com ele), a lógica de Brodsky é ascencional: de um dia para o outro pode-se ocupar um escritório a vários andares do chão. A ascensão de Brodsky satisfaz-se no próprio movimento, a respeito do qual ele pensa que, mesmo sem objectivo humano e meramente instrumental, acabará por produzir efeitos superiores ao da Graça divina ou da herança clássica, em parte porque o risco da perdição total é maior e a queda não tem amparo possível; em parte, porque a todo o instante é possível hoje cancelar o passado, e pode-se mesmo acordar na posse de fortunas inesperadas.

O que Bartleby vê na parede para mim é um mistério. Brodsky diz que ele vê um fungo e chama-lhe a atenção para o facto de, com isso, estar a perder o espectáculo da outra janela, o espectáculo de Wall Street para o qual dá vontade de mergulhar (mergulhar de arranha-céus foi lido na altura da estreia como uma alusão ao 11 de Setembro, mas o texto foi escrito antes disso e a imagem subliminar era para mim a dos suicidas que se precipitaram para a rua durante o crash bolsista de 1929). Acredito que Brodsky veja nesse mergulho uma beleza superior à das colunas dóricas. O biombo teria decerto algum significado se pudessemos ver o que está atrás dele. Isto nunca acontecia na encenação do meu texto. Estava lá, aliás, para que nada fosse visto.

4. Qual a importância do carcereiro e por que lhe é atribuido um discurso mais eloquente do que o habitual?

Tem a certeza de que a eloquência não é habitual nos carcereiros? Eu não consigo pensar em profissões mais eloquentes do que a de carcereiro (e Robinson acha que um simples advogado não pode sequer sonhar metade dessa eloquência). A eloquência de Robinson (ou da profissão) provém da seguinte circunstância: nela se mostra que existe um vínculo entre o carácter e o destino e que, em última análise, não há destinos em inocência. É este saber taciturno que Robinson carrega consigo. Pessoas assim ou vão para filósofos ou para carcereiros. Por outro lado, repare que um carcereiro é a justificação de um escrivão. Administra no espaço as distinções que um escrivão estabelece num papel. Consagra-o, tal como um sacerdote consagra os mandamentos escritos. O seu maior receio, evidentemente, é o dos falsificadores (ou seja, dos contra-escrivães). Ele sabe que a Lei é uma repartição do carácter pelo espaço (sob a forma de celas) e, portanto, a forma do destino. Ele acha que todos têm direito a esse destino e está disposto a guardar as chaves. Porém, compreendo a sua pergunta, mas há que reconhecer que a premissa de um escrivão que prefere não fazer nada e de um patrão incapaz de despedi-lo liberta-nos de todo o escrúpulo realista.


5. O que representa Turkey com as suas manifestções de raiva no final? Qual o papel de cada escrivão? Por que lhe atribui menos importância que o texto original
?

Atribuo-lhe uma importância proporcional ao tempo dramatúrgico de que dispunha. Para isso, tive que sacrificar o outro escrivão, Nipples. A opção por novas personagens teve esse efeito de cancelar ou mitigar a presença das originais. A raiva de Turkey: essa questão remete para uma interpretação do texto de Melville, uma vez que essa raiva está na fonte. Da minha parte, quis introduzir um elemento cómico na história e achei que um Turkey indignado cumpria esse papel (em congruência, penso, com o que faz Melville). Um cómico é sempre aquele que não sabe que as coisas deixaram de existir. Por isso tropeça em objectos que não estão lá ou colhe flores de um campo impossível. Turkey é cómico porque a sua indignação tem um teor corporativo: um escrivão, diz ele, não trabalha assim. Porém, o objecto da sua raiva já deixou de existir: o escrivão Bartleby já lá não está e não estamos já a falar de trabalho.

6. Por que segue um caminho diferente para o desfecho da história? Qual o sentido de Bartleby não morrer na prisão e, em vez disso, voltar para o escritório?

Ele não volta para o escritório. A última cena é cronologicamente anterior às restantes. Coloquei-a no final para que, numa palavra, não houvesse fim. E, como sabe, não há fim: de outro modo não estaríamos aqui a falar. Segundo algumas versões, bate-se sempre com a cabeça contra o vidro.

8. Por que escolheu interpretar a personagem de Brodsky? De que forma se apresentou isso como um desafio?

Não escolhi. A definição do elenco é habitualmente uma atribuição do encenador. O encenador da minha peça terá considerado que no conjunto de actores com que a companhia trabalhava (ou punha a hipótese de vir a trabalhar) nenhum satisfazia as exigências do papel, em particular as que se prendiam com a aparência física. Quando me foi proposto que assegurasse esta personagem, fiquei a saber que correspondo fisicamente a uma certa percepção comum do capitalista emergente, o que, em princípio, deveria deixar-me tranquilo. O desafio que isso representou é semelhante ao de quem abraça uma nova profissão. Embora já tivesse alguma (escassa) experiência como encenador, só ocasionalmente, e em ambiente semi-amador, fora actor. Oiço dizer que autores que representam os próprios textos não se distinguem, geralmente, como exemplos da grande arte da representação. Eu não terei fugido à regra. É evidente que quando se escreve para teatro já se antecipa para cada personagem uma dicção, ou mais precisamente um ductus específico. Terei sido fiel a essa primeira concepção estritamente literária da personagem, o que terá dado consistência ao meu trabalho, mas essa constância, precisamente, é tudo aquilo que um actor deve abominar.

1 comment:

Anonymous said...

És incrivel Francisco e por isso ainda Hoje me lembro de ti! Já passaram 11 anos AMO-Te.