Tuesday, 10 June 2008

Comentário a "The Sleepers" de Walt Whitman (post de Rodrigo Fernandes)


“The Sleepers” é considerado dos mais assombrosos e bem conseguidos poemas de Walt Whitman (poeta americano: 1819- 1892). Em 1856, na edição de “Leaves Of Grass”, este poema aparece intitulado “Night Poem”, depois “Sleep-Chasings” em 1860 e 1867. Na edição de 1871 Whitman dá-lhe o nome pelo qual hoje é conhecido. Esta mudança no título demonstra uma mudança progressiva no significado do poema.
O poema é um sonho onde um fluxo constante de imagens se sobrepõem, formando por fim uma imagem de plena união onde o poeta é uno com todos os seres que dormem. Neste poema o sonho é algo reparador, unificador dos Homens. Ao longo do texto vamo-nos deparando com uma diversificação que nos é apresentada como o caminho para uma união maior- união esta que quebra todas as imposições de raça, estatuto social ou sexo. Também fica marcada a posição de Walt Whitman em relação à escravatura, embora a referência a este assunto seja breve: Whitman era contra a expansão da escravatura embora não fosse a favor da abolição “The call of the slave is one with the master's call, and the/ master salutes the slave (...)” (“The Sleepers”- parte oito).
Estruturalmente, o poema é composto por estrofes livres, onde a palavra e a ideia parecem comandar o poeta e não o contrário. O poema divide-se em oito partes, cada uma descrevendo uma situação ou uma sensação, que embora nem sempre parecam ter uma ligação óbvia ou imediata com as seguintes, adquirem significado no todo do poema. Esta estruturação deve-se ao carácter sonhado do poema: este não só fala de um sonho como parece um sonho, antecipando a teoria freudiana do inconsciente.
Através da enumeração de vários personagens, o poeta dá-nos a noção da variedade de identidades presentes no seu sonho, com quem ele partilha não só o sonho mas também o ser e até o espaço. O poeta observa a vida desde o nascimento até á morte. A enumeração destas identidades não serve apenas para demonstrar a variedade do seu sonho mas também a própria variedade da vida. Todos dormem, e é esse dormir que os irá ligar como se um único ser fossem: o sonho é o veículo para se atingir o ser mais profundo e o ser mais profundo é uma única consciência com todas as outras. De certa forma, esta união é uma resposta à procura do lugar do homem no cosmos, cuja fusão com outras identidades o aproxima do não-ser budista.
Na segunda parte o poeta continua identificando-se com mais personagens: primeiro uma senhora idosa, depois uma viúva e acaba por enfrentar a sua morte “A shroud I see and I am the shroud, I wrap a body and lie/ in the coffin,/ (...)”. Este confronto com a sua morte confere-lhe significado à vida “(Its seems to me that every thing in the light and air ought/ to be happy,/ Whoever is not in his coffin and the dark grave let him/ Know he has enough.)”.
A partir da terceira parte, o poeta começa a expressar-se através de imagens, de certa maneira fazendo lembrar alucinações: um gigante luta no mar, contra as ondas que o atiram contra as rochas. Esta luta é uma luta que o gigante não poderá ganhar: a derrota do Homem pelo mar é um tema recorrente na literatura Americana. O mar aqui pode ser encarado com a fronteira entre a vida e a morte, como um simbolo do mundo espiritual que é alcançado por muitos através da morte. Esta cena, tal como a seguinte, a quarta parte do poema, representa um conflito com o mar: na quarta parte o poeta vê um naufrágio e sofre enquanto vê os marinheiros indefesos afogar-se “I search with the crowd, not one of the company is wash'd/ to us alive,/ In the morning I help pick up the dead and lay them in rows in a barn.”.
Estes dois episódios representam morte e derrota.
Na quinta parte o poeta estabeleçe uma ligação com o passado, com os fundadores da sua nação. Relembra George Washington em Brooklyn, rodeado por oficiais, incapaz de exprimir a sua dor causada pela enorme perda de vidas que uma guerra causa. Mas a paz vem a caminho, e os seus oficiais despedem-se do seu general com carinho e afeição.
Na sexta parte o poeta relembra algo que a sua mãe lhe contou, sobre uma Índia que um dia, enquanto ela ainda morava com os seus pais, visitou a sua casa e lá ficou um pouco. Esta Índia “red squaw” é descrita com grande delicadeza e o poeta mostra-a como sendo alguém de uma grande beleza e pureza espiritual. Apesar da sua mãe ter pensado meses a fio sobre essa personagem nunca a voltou a ver.
Em contraste com a terceira e quarta partes, a quinta e a sexta repsentam uma união, a beleza: a ligação espiritual do general e dos seus soldados e a ligação espiritual da sua mãe com a nativa. A espera da mãe pela nativa é parecida com uma espera romântica de uma senhora pelo seu senhor.
Na sétima parte o registo do poema muda de novo: o poeta encontra-se com algo nunca antes. Esta luz que envolve o sujeito poético pode ser considerada como a iluminação que o poeta atingiu através deste sonho- e as estações do ano integram o sonho e o poema“O love and summer, you are in the dreams and in me,/ Autumn and winter are in the dreams (...)”. A enumeração de diferentes identidades retorna. O sonho é um sonho reparador para todos: todos dormem e nos seus sonhos todos voltam a casa (“The sailor sails, the exile returns home,/ The fugitive returns unharm'd, the immigrant is back (...)”. Nesta passagem Whitman cobre muitas nacionalidades “The poor Irishman”, “The Dutchman”, “The Scotchman”, “Welshman”, etc. Esta multiplicidade de indentidades de nacionalidades quebra fronteiras e representa a união para além de tudo o que é Humano. O sonho é um sonho reparador, veículo de igualdade fraterna:“I swear they are averaged now – one is no better than the/ other,/ The night and sleep have linken'd them and restored them.”; “I swear they are all beautiful(...)”. “The soul is always beautiful”
Na oitava parte todos os sonhadores, que são belos, flutuam pola terra de mãos dadas numa união de perfeita comunhão onde a identidade se dissipa através do sonho e todos os seres separados fisicamente tornam-se uma só consciência e um só ser. Aqui o poeta usa de novo a diversidade para exemplificar a união maior. Neste poema a diversidade é o motivo da união e o caminho para este: a realidade espíritual e a profundidade da mente humana não está na personalidade e na diferenciação de personagens, mas sim na sua ligação através do sonho, o ser Uno, o Universo que é união de todas as coisas-. Este é o poder miraculoso da noite. Também o poeta se rende à noite e se deixa levar por ela, pois esta acaba por ser o seu inicio e o seu fim “I know not how I came of you and I know not where I go/ with you, but I know I came well and shall go well./ I will stop only a time with the night, and rise betimes,/ I will duly pass the day O my mother, and duly return to you.”

4 comments:

Anonymous said...

A ideia da unidade e diversidade humana e a tentativa de idealizar uma consciência comum é efectivamente no poema "The Sleepers" de Walt Whiteman uma preocupação do poeta. Esta ideia e principio filosficos que abrem caminho aos grandes pensadores do seculo XX como Freud e Jung, não deixam de ter efectivamente um passado remoto nas teorias orientais budistas e taoistas. A acção sem acção e a ideia de consciencia colectiva foram sendo desenvolvidas ao longo dos seculos na anscestral filosofia Taoista. Outro vector igualmente importante que me parece interessante analisar é a ligação deste colectivo ao campo das ideias politicas que vem a surgir no século XX, o nacional socialismo e o comunismo Estalinista, também procuraram integrar nas suas bases filosoficas esta conciência de colectivo. O ser humano do final do seculo XIX e seculo XX, percebeu a necessidade de fazer uma evolução não só politica mas social e economica em direcção a um futuro em que exista uma consciencia comum em que a diversidade apesar de respeitada conflua para uma consciencia comum. Esta necessidade humana tem tido no entanto dificuldades em encontrar uma formula que permita essa evolução que o ser humano começa a sentir como natural.

vxcvxvc said...
This comment has been removed by the author.
vxcvxvc said...

Pedro, assumir que «o ser humano do final do século XIX e (suponho, início do) século XX percebeu a necessidade de fazer uma evolução não só política mas social e económica em direcção a um futuro em que exista uma consciência comum em que a diversidade apesar de respeitada conflua para uma consciência comum» (se interpretei bem este pequeno labirinto) é ingénuo, e algo desinformado.

Em primeiro lugar o que é o "ser humano" no final do século XIX? ou no início do século XX? Ou em qualquer outro momento da história? O ser humano como ser político não é uno, consensual ou semelhante. práticas distintas ou opostas às do ocidente existiam e existem ainda evidentemente em pontos diferentes do globo, adaptados a culturas variadas e distintas, conforme o seu nível de desenvolvimento superior ou inferior (se as coisas se puderem pôr nestes termos).

Devo então assumir que, por lapso ou preguiça, assumiste como "ser humano" o homem europeu (uma outra designação confusa). E devo assumir igualmente que essa «consciência comum em que a diversidade apesar de respeitada conflua para uma consciência comum» se refere à democracia, ou, com rigor à realidade histórica, aos adventos democráticos.

ora, esses adventos democráticos, esse embrião da democracia, longe de se entender nos termos e condições em que hoje vivemos, eram, ainda para mais, minoritários. e reprimidos. a europa teria de sobreviver a duas guerras devastadoras para se "converter" à democracia. as vontades não estavam viradas nesse sentido. e por não estarem, a consequência óbvia seria a ditadura. nacionalismos, nazismos, comunismos e outros ismos sem diferenciação, sufocavam qualquer ideia de «confluir» numa consciência comum de diversidade. era precisamente na ideia da supressão da diversidade (seja pela raça, ou pela classe) que o nacional socialismo e o comunismo estalinista (a continuação óbvia da violência leninista) se erigiam, idealizavam e agiam.

parece-me no entanto admirável que consigas ligar um poema de Whitman a Freud e Jung (com a irónica pérola de lhes chamar grandes pensadores); ao budismo e ao taoismo; e por fim, aos regimes totalitários do Século XX e, ao mesmo tempo, à ideia de democracia. e tudo num pequeno texto.

Anonymous said...

Rui, não obstante concordar com grande parte das asserções e correções feitas ao meu comentário, sinto-me na obrigação de reformular e explicar o que pretendi exprimir. Em primeiro lugar porque talvez tenha ido longe demais ao atribuir a este poema uma importância que talvez ele não tenha por si só, talvez seja apenas um remoto eco e não verdadeiramente decisivo.

As minhas conclusões resultaram simplesmente de fazer interligações entre ideias ou permissas que me parecem acertadas. Mas as conclusões tiradas podem estar completamente erradas. De qualquer das formas foi um exercicio baseado nas leituras efectuadas e essencialmente no comentário do Rodrigo, que aprecei imenso. Penso todavia ser essencial essa mesma discussão porque é minha convicção que todas as conclusões por mais erradas que nos pareçam tem o dom de nos fazer pensar sobre as realidades e isso é o que verdadeiramente interessa.

Primeira constatação. Efectivamente estou a referir-me ao homem branco, europeu do final do seculo XIX e inicios do sec XX. O contexto concreto: Sociedade Industrial Americana e Europeia. Esse tem sido genericamente o sujeito das obras comentadas, e por isso as minhas desculpas por não ter precisado a que "Homem" e "Humanidade" me estava a referir.

Quanto a Freud e Jung reitero que tiveram um papel decisivo no campo da psicologia e psiquiatria. E as conclusões a que chegaram influenciaram não só a pintura como também a literatura. Posso afirmar com certeza que estes dois campos foram influenciados pelas suas conclusões, embora outros também possam ter sido. As suas conclusões influenciaram campos totalmente diferenciados do ponto de vista intelectual e por isso não pude deixar de salientar esse facto. A descoberta de si mesmo pelo auto conhecimento, o sonho como algo indutor de realidades até então ignoradas parece-me a mim tão genial como num outro plano a descoberta da máquina a vapor. Porque permite tantas aplicações práticas...
Se do seu pensamento nasceram descobertas de relevo não vejo porque não lhes chamar grandes pensadores...

A consciência comum não tem que necessariamente ser a democracia, ou comunismo ou um qualquer outro modelo. Podemos ver o nazismo e o comunismo na perspectiva do contrário da democracia. Visão maniqueísta de divisão absoluta entre o bem e o mal. Não vou por ai...
Embora tenha a convicção de que a democracia apesar de resultar de um processo evolutivo, crivado de erros é o melhor dos sistemas.
Percebo a realidade neste caso Histórica como dinâmica. Neste caso a evolução em busca da " consciência colectiva" pode ter levado os seres humanos a procurar respostas em principios errados, mas que foram considerados certos naquele particular momento da História da Humanidade. As lições que tiramos dai foram imensas. A evolução apenas nasce dos erros...

Concordo em absoluto e peço desculpa nesse ponto se do meu comentário não resultou a asserção que a realidade do século XIX não permite falar em democracia como hoje a concebemos.
O conceito de democracia no século XIX é algo muito discutivel. Quanto a ideia de "conversão a democracia", não compreendo mais uma vez a que te referes, teriamos que discutir o que é democracia. Mesmo a democracia actual é completamente diferente da Clássica Democracia Grega, o universo de cidadãos é elevado a centésima potência.
Sem dúvida que os "ismos" sufucaram a ideia de consciencia comum, embora isso também seja uma perspectiva. Podemos enquadrar essas experiencias antes num campo de evolução...

Quanto ao facto de o Estalinismo ser uma obvia continuação do Leninismo, penso que também aqui há que diferenciar estas duas realidades. Durante o Leninismo existiram várias tendencias, Trotsky nunca partilhou as ideias de Estaline, nos primórdios da revolução Russa. Não creio que fossem aplicadas as mesmas medidas aplicadas durante o periodo dominado por José Estaline. O Leninismo foi um periodo ainda assim um pouco diferente do Estalinismo...

Quanto ás impressões retiradas do poema. Não foram conclusões obvias e provavelmente um pouco forçadas. Ainda assim parece-me que não devemos ver a literatura como um espaço apenas fechado sobre si, sem qualquer capacidade de relação mais arriscada. Quanto ás relações entre Freud e sobretudo Jung com o Taoismo, efectivamente a primeira tradução do O I Ching, livro base do Taoismo traduzido por Richard Willhem, foi prefaciada por Jung. Essa talvez a mais fácil ligação...

Devia no entanto ter feito todas estas explicações, e apresentado o comentário de foma menos ligeira e mais fundamentada. Fico no entanto muito feliz que o meu muito reduzido comentário tenha sido lido.